RESCISÃO DE CONTRATO DE TRABALHO POR FORÇA MAIOR: QUAIS OS RISCOS? |
Com a crise econômica decorrente da pandemia do coronavírus, algumas empresas estão dispensando empregados sem o correto pagamento das verbas rescisórias. Tais empresas apontam que esse procedimento teria fundamento nos arts. 486, 501 e 502/CLT, por se configurar atualmente um motivo de força maior e que estas verbas devem ser pagas pelo governo.
A situação, porém, não é tão simples. Entendemos que as empresas que assim estão agindo correm sérios riscos de condenação em ação que pode ser ajuizada por seus empregados.
É preciso entender o contexto. Em razão da pandemia do coronavírus foi reconhecido oficialmente em todo o território nacional o estado de calamidade pública (DL 6/2020), vale dizer, o risco de exposição de toda a sociedade ao contágio de uma doença que se propaga em alta velocidade, não tem cura nem vacina até o momento, atinge um número muito grande de pessoas em curto espaço de tempo e o tratamento de elevado número de pacientes em hospitais cria uma previsão de colapso no sistema de saúde. Essa é considerada a força maior que tem levado os governos a adotar medidas de distanciamento e isolamento social. Aqui há um interesse público a sustentar as decisões dos governos: a saúde pública, a proteção de toda a coletividade, porque não apenas os doentes de Covid19, mas também outras pessoas que venham a precisar de atendimento hospitalar podem ser prejudicadas se houver um colapso do sistema de saúde.
Dessas medidas decorrem problemas de natureza econômica, a redução da atividade produtiva, da atividade comercial, do fluxo de caixa, da receita de muitas empresas, etc. Surge então a necessidade de dispensa de empregados e alegação de força maior por parte de algumas empresas, para fazerem a dispensa sem pagamento, total ou parcial, das verbas rescisórias.
É importante se fazer a seguinte pergunta: essa dispensa está abrangida pelo risco do negócio? Mesmo que seja possível concordar que estamos diante de um risco excepcional, mais acentuado, que a pandemia é um fato externo, não previsto e estranho à vontade da empresa, com o qual ela não concorreu, ainda assim há sérias dúvidas sobre a configuração da força maior para fins de rescisão de contrato de trabalho, porque a possibilidade de rescisão de contrato de trabalho deve ser prevista desde a contratação de cada empregado, bem assim a verba necessária para fazer frente a essa obrigação, sobretudo em momento de grave crise econômica, em que o desemprego aumenta e os desempregados ficam mais desamparados.
E a solução encontrada – atribuir a responsabilidade de verbas trabalhistas ao governo – é transferir o risco, ou parte dele, ao empregado, que fica sem receber, embora também não seja responsável pela pandemia. Essa medida contraria todo o sistema protetivo do Direito do Trabalho. Percebe-se, assim, que a fórmula encontrada por algumas empresas para a rescisão do contrato com base na alegação de força maior apoia-se na proteção de interesse privado, enquanto as medidas de distanciamento e isolamento tem respaldo no interesse público, sendo certo que este tem prevalência sobre aquele.
Por isso, acreditamos que a interpretação que a Justiça do Trabalho deve dar às dispensas por força maior realizadas em função da pandemia do coronavírus certamente será bastante restritiva, como já tem sido na sua aplicação em casos passados. A regra legal, especialmente o art. 486, que transfere responsabilidade ao governo, pressupõe uma situação excepcional e dirigida a casos pontuais e específicos em que a administração pública determina, por ato oficial, o encerramento de uma determinada atividade produtiva. No momento, o que existe é uma determinação genérica e abrangente de isolamento e o distanciamento social, fundada no interesse público, que acabam levando à redução de atividade econômica de forma generalizada.
Embora seja possível afirmar que a empresa está sendo obrigada a paralisar suas atividades em razão dos efeitos das medidas de governo, que se trata de um risco acima do normalmente previsto para o negócio, é imperioso reconhecer também que as decisões dos governos visam proteger o interesse público.
Nesse caso, também é importante considerar que algumas alternativas jurídicas foram apresentadas justamente com o propósito de evitar os desligamentos de empregados em momento risco de grave crise de saúde pública e econômica. Entre as opções estavam a suspensão de contrato de trabalho sem custo para pequenas empresas ou com custo reduzido para os empregadores de maior porte, a possibilidade de redução de jornadas e salários em até 70%, além de outras já previstas na legislação como a concessão de férias individuais e coletivas. A rescisão de contratos, portanto, deveria ser a última opção.
Diante do dilema entre o interesse público que orientou as medidas de governo e o interesse privado que motiva as rescisões de contrato, é bem provável que a Justiça do Trabalho venha a se apoiar em princípios constitucionais, como a solidariedade, a função social do contrato e da propriedade, a valorização do trabalho e a dignidade da pessoa humana, para restringir a aplicação do art. 486, 501 e 502/CLT.
Por tudo isso, acreditamos que empregados que foram dispensados sem o recebimento integral de suas verbas rescisórias tendem a procurar o ressarcimento de seus prejuízos mediante ação trabalhista, com razoável chance de êxito.
Já as empresas que se utilizaram desses dispositivos para fundamentar rescisões de contratos, atribuindo ou não tal responsabilidade ao governo, se acionadas pelos empregados que se sintam prejudicados terão duas alternativas: 1) chamar ao processo o ente público para que seja julgada a sua responsabilidade no caso concreto; 2) após eventual condenação em ação trabalhista, ajuizar ação direta contra o governo que entende responsável pelo prejuízo e postular a indenização que entenda lhe é devida.
Marcelo Wanderley Guimarães
Advogado.
Mestre em Direito pela UFPR.
Professor de Direito do Trabalho.
Sócio do escritório Marcelo Guimarães & Advogados Associados.